segunda-feira, 21 de março de 2016

“Os olhos gentis” (04/03/2016)

O olhar gentil levantou e esfregou-se o máximo que pode para enxergar o dia. Embora tarde permanecia escuro, era uma grande chuva cinzenta que o acordava. Então o olhar gentil estendeu a mão, sentiu seu gosto, sentiu seu cheiro, recebeu a chuva de braços abertos como fosse um dia de Sol. Com paciência ferveram a água e um pouco perdido no tempo assistiram a bolacha se desfazer em mil pedaços no fundo da xícara. Os olhos gentis não trataram nada naquela da manhã como um desastre, era muito cedo para desistir, e no fundo do chá encontraram a possibilidade do novo, do improvável e deram um gole na esperança. Saíram de casa sem o sufixo e ficaram na espera......do sonho, do amigo, do abraço, do desejo, da mudança, da vontade, do destino e do ônibus. Tudo que se espera demora um pouco mais e os carros começaram a jogar água para calçada. Com os pés molhados o olhar gentil titubeou, mas escondia preocupações mais profundas e não havia espaço para rancores. Deu sinal, a vida parou, subiu e seguiu. Toda vez que se caminha pode ser para qualquer lugar, mas invariavelmente só partimos com lugar certo, que com muita sorte pode coincidir com o que queremos. O solhos gentis pairavam sobre aquele mesmo lugar que viram milhares de vezes antes sem jamais pesar a rotina, a nostalgia de tudo que já não era, a alegria esmaecida em paredes sem cor, memórias de um corredor vazio, um agora tão inerte quanto o passado. Não fosse a lágrima iluminar o caminho, desfocar e colorir a realidade, os olhos gentis não teriam seguido mais nenhum passo. Encontrou um sorriso para abrir a porta, cumprimentar os amigos e até mesmo acreditar que poderia ser diferente. Como antes o cansaço se abateu sobre o olhar gentil, corpo e alma entraram em um acordo, e ele por um momento se fechou imaginando ser a última vez que deixava aquilo para trás. Na volta para casa observou inúmeras vidas na falsa percepção de felicidade. Tudo por aqui somente parece até realmente abrir os olhos. Por isso aquele par era gentil com a ilusão, era melhor enquanto durasse. Na casa vazia, no silêncio da mente, o olhar guardou um último esforço, no fundo do espelho enxergou a chama, gravou na memória e descansou. Consigo a certeza de que o sonho poderia acordá-lo novamente. 

Ass: Danilo Mendonça Martinho

Um comentário:

  1. Tão rico em detalhes, me pus em todas as cenas. Foi bom, senti alivio. Apesar de tudo conspirando contra.

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